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"Eminência Parda": Emicida é grande demais

Ronald Rios

09/05/2019 12h28

Jesus amado. Eu tô até sem palavras. Então ESSE foi o primeiro single oficial do disco novo do Emicida. Ele tinha que chegar essa assim. Como Django cavalgando e atirando, voando sangue de geral que entrar na frente da mensagem do compositor de insanidades que domina a arte. Um rap desse não sai numa sentada, isso aí fruto de desafiar o papel vazio, 10 anos depois e ainda tirando truques da cartola. É 100% sobre luta preta, de forma geral e específica do corre diário do Emicida. É só ver ali. Alguns trechos que já grudou na minha cabeça pra citar daqui a 10 anos igual a gente faz com a primeira mixtape:

"Meu cântico fez do Atlântico um detalhe quântico"

O Atlântico tá entre nóis e o continente africano. No segundo disco do Emicida, o cara foi pra África, colou de volta, e não só trouxe a "musicalidade africana pro seu rap" mas conseguiu construir isso com um sentido de maior aproximação e identificação entre o povo preto brasileiro, fruto de um sequestro nefasto e sua origem no continente africano. Quem não ganhou isso até hoje, ainda tem tempo de ir lá dar um play antes de sair o disco novo. Então quando ele manda que é só um "detalhe quântico", ele não tá mentindo. A voz dele serviu com pré-pangeia, reunindo Brasil e África através dum tiro mais contundente que só o disparado na sampleadora.

"Estilo Jesus 2.0 (Carai, Jesus 2.0)
Caminho sobre as água da mágoa dos pangua que caga essas regra que me impuseram"

Hahaha vagabundo é foda. Eu adoro esse trecho. Primeiro o ad-lib surpreso com a própria linha. "Carai, Jesus 2.0…" tipo "fui longe demais?" Não foi. O personagem tá caminhando sobre as águas igual fez o JC 1.0. E a coisa de "regras que me impuseram" é o Emicida respondendo às críticas de sempre, que vem tanto dos detratores naturais quanto da vigilância próxima do "não pode fazer isso senão não é mais real".

O povo chora de inveja e Emicida segue impávido caminhando sobre essas lágrimas de mágoa.

"Não sou convencido, (não)
Sou convincente"

Eu acho que ele é os dois. Mas um rapper que não é convencido é um tubarão sem dentes. E olha as medalhas e condecorações que ele conquistou. Sua discografia fala por si só. Tá valendo.

"Aí, vê nas rua o que as rima fizeram
Da pasta base pra base na pasta"

A genialidade de dobrar palavras em sentidos. As rimas deram tudo que o Emicida tem. Casa, carro, programa de TV, experiências de luxo – por que não? Ele falar sobre as "base na pasta" (os beats numa pasta de computador, coisa comum no seu dia a dia de trabalho) serem seu destino ao contrário da "pasta base" da farinha vendida nas biqueira, é daquelas linha que vagabundo fala UOU.

Agora vem nessa que é pra explodir:

"Eu decido se cês vão lidar com King ou se vão lidar com Kong".

Não mais o racista vai ditar como o Emicida – ou qualquer jovem preto – vai ser visto. Ele separa King Kong para lembrar que em um momento rico da história, pretos foram reis. Ele tá só resgatando isso. Lembrando que é um rei antes de qualquer coisa. Classic shit.

Lá vem mais uma, te prepara:

"Minha caneta tá fodendo com a história branca
E o mundo grita: 'não para, não para, não para"'

Vivemos uma história branca. O trabalho feito lá atrás foi bestial, de fato, mas as consequências não pararam quando decidiram que não ia ter mais escravo. A história sempre foi contada dum ponto de visto branco. Pretos apareciam como coadjuvantes e muitas vezes tudo que você aprendeu na escola é que eles foram 1) escravos e 2) um dia liberados. Isso é muito deprimente. Emicida vem a cada música relembrar que tá errada essa narrativa. A caneta dele veio foder com a história branca. O trocadilho sexual com "não pára, não pára" é mais um daqueles truques que só o Emicida tira da cartola. Ele sabe que tem voz. Ele sabe que tá conseguindo construir uma parada muito grande, quase como um professor de história que as ruas nos deram. Tem noção de que lá em Triunfo que eu ouvi a primeira vez sobre o Império Ashanti? A escola não tinha isso. Mesmo os professor mais marxista nunca se importaram em passar essa visão pra gente. É meio foda falar de educação nesse momento, mas eu desejo que tal qual rola em algumas escolas nos EUA, ter aula de história negra aqui seria uma das coisas fundamentais para ensinar o brasileiro sobre a sua real história, suja e vergonhosa. Miscigenação não é gozolândia. É muita dor. Racismo não é mimimi. É um sistema opressor.

Ele fecha seu verso com essa porrada:

"Como abelhas se acumulam sob a telha
Eu pastoreio a negra ovelha que vagou dispersa
Polinização pauta a conversa
Até que nos chamem de colonização reversa"

BOOM. É a declaração oficial de responsabilidade sobre seu povo. E o sarcasmo de zombar dos babacas do "racismo reverso". A luta do Emicida é pra que outros jovens negros lutem até que algum babaca venha com papinho de "colonização reversa". O poder das palavras dele é muito grande. A influência dele sobre esses jovens também. Que seja assim. E que os invejosos chorem tudo de "reverso" pro Jesus 2.0 andar sobre essas águas.

A produção é do geniozinho Nave Beatz, conta com um verso do irmão Papillon, refrão do monstro Jé Santiago e um outro caprichado da Dona Onete.

Update: saiu videoclipe!

Sobre o autor

Ronald Rios é roteirista, comediante e documentarista. Apresentou o "Badalhoca MTV" de 2008 a 2011 na MTV Brasil. Na Band fazia o quadro "Documento da Semana" dentro do programa CQC, num formato de pequenos docs sobre pautas atuais na sociedade brasileira. Escreveu para o Yahoo, UOL, VICE, Estadão, Playboy, Red Bull e Billboard. Em 2016 fez a série de documentários "Histórias do Rap Nacional" para a TV Gazeta. Ronald também apresentou de 2010 a 2012 o programa "Oráculo" na Jovem Pan FM e foi roteirista do Multishow de 2009 a 2011, pela produtos 2 MLQS, onde rodou o programa de TV Brazilians, eleito um dos 5 melhores pilotos de TV nacionais de 2011 pelo Festival de Pitching de TV da operadora Oi. Em 2017 e 2018 rodou pequenos docs, podcasts e campanhas multimídia para o artista Emicida na gravadora Laboratório Fantasma.

Sobre o blog

Rap Cru é o blog do roteirista e documentarista Ronald Rios sobre Hip Hop. Brasileiro, americano, britânico, latino… o que tiver beats e rimas, DJs, grafiteiros e b-boys e b-girls, tem nossa presença lá.

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