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Don L: "A gente não pode aceitar que nossa utopia não ultrapasse o básico."

Ronald Rios

29/04/2019 10h45

Seu chapa Don L está de volta com o single "Não Escute Meus Raps", uma ironia sobre os efeitos de virar um fã de Don.  Com participação fundamental do Terra Preta, a co-produção de Don L e Deryck Cabrera é um convite a não ser seguido. Um convite a não caminhar nas águas que ele vem caminhando desde muito antes de descer pra São Paulo com a sede de secar a Sabesp.

O modelo Don L não é aconselhável para quem não quer ser um misantropo? Papo de psicologia reversa? Se liga aí no que o Don tem a dizer aí sobre seu novo som:

A música do Don L prega contra a mediocridade?
Acho que tem um sentimento de inconformidade, de enxergar além da superfície e querer mais da vida. A gente vive em meio a tanta carência, de ter o básico mesmo, que a gente acaba aceitando a noção de que o básico é privilégio, porque objetivamente é, mas a gente não pode aceitar que nossa utopia não ultrapasse o básico.
Mano, uma coisa que eu bolei foi ter vagabundo achando que era coisa de "psicologia reversa" em vez de entender a parada. A barra tá baixa assim?
Acho que a barra tá baixa realmente mas nesse caso aí não é nem isso. É que a gente tá numa cultura de idolatria do coaching, do gênio empreendedor. O rap ajudou bastante nisso inclusive. Fãs de coaching e técnicas de marketing. Oh, o gatilho mental, isso e aquilo. Eu vi um desses mais conhecidos no Brasil, ensinando uma técnica de ludibriamento de outra pessoa num processo de venda, citando um exemplo no qual ele mesmo foi ludibriado – mesmo conhecendo a técnica, com uma excitação quase débil mental por isso. É reduzir a vida a uma celebração da mentira e da estupidez num nível absurdo. Wow, fulano é gênio porque enganou todo mundo! Okay, mas e aí, chapa? Por isso ele é seu ídolo? Às vezes chega ao ponto de que o que enganou todo mundo não foi mais nem a mentira contada em si, mas o fato de as pessoas acharem que essa mentira enganou todo mundo. Então todo mundo é enganado pelo fato de acharem que todo mundo foi enganado. E esse é o tipo de genialidade cultuada.
O risco do garoto ao ouvir seu som é qual? É uma espécie de pessimismo (realista) com a cena musical?
Com a vida em geral. E isso é perigoso. Talvez você seja educado a olhar pros seus pais e enxergar uma vitória pelo fato de eles comerem, porque seus avós não comiam. E eles tem todo um blueprint, todo um mapa de vida pra que você faça como eles pra ter o que comer todo dia. Um mapa mais ou menos preciso, com riscos mais ou menos calculados. Pro filho do pedreiro, isso vai ser literal, de pagar um aluguel e comer mesmo, e os riscos já vão ser altíssimos mesmo pra alcançar o básico. Pro filho da classe média, isso vai ser um patamar mais elevado de repetição, mas continua sendo repetição. É uma sociedade de merda e os sonhos são de repetição. Mesmo se você ascende socialmente, sai da miséria, você provavelmente vai apenas mudar seus sonhos de repetição de patamar. Você vai sonhar os sonhos de repetição de um classe média, ou de um rico. Quando você começa a pensar fora da caixa, tudo começa a ser muito mais perigoso e incerto, porque o que você vê pela frente é o horizonte. Você não tem como saber o que você quer, porque você não sabe como vai ser. Você só sabe que você não quer recontar as mentiras que as pessoas contam. Você quer algo novo. E isso pode dar ruim. Isso pode falhar e quando isso falha é a pior coisa. E você vai falhar com o mundo contra desse jeito, e vai ter que se levantar, e eu não sei quantas vezes vai ser preciso fazer isso. Quando eu digo que é perigoso eu tô falando muito sério.
A cena tá mais mediocre agora ou sempre foi mediocre e nossa percepção é enviesada a acreditar que agora tá pior, especialmente porque agora o rap é pop?
O Hip Hop brasileiro tá num ótimo momento, nunca esteve tão bom. E a qualidade em geral tá muito melhor, só melhora, o que não quer dizer que esteja boa. Eu não acho a qualidade da música brasileira boa, em geral. A gente tem grandes artistas mas o espaço pra inovação e investimento em qualidade e grandes realizações é muito escasso, quase nulo. As coisas evoluem devagar e o rap que pra mim é o que tá tendo de mais propositivo, ainda fica amarrado em condições baixas. Pouca grana, resumindo, e além da pouca grana, as pessoas querem reproduzir o mercado norte-americano só que com baixo orçamento. O que me preocupa no rap mas não só no rap, e não só no Brasil, porque acontece na África, e no México, por exemplo, é que agora com a Internet, tudo é uma cópia do mercado musical norte-americano. No rap você tem um Kendrick Lamar brasileiro, tem o Lil Uzi Vert brasileiro, o Future brasileiro, etc… E isso simplesmente não encaixa porque a realidade brasileira não é a americana. Mas tá todo mundo tão anestesiado, sonhando os mesmos sonhos fabricados, que não percebe. As pessoas tão falando de Gucci e Versace nas músicas, como sonhos de consumo, sendo que a venda dessas lojas no brasil é quase nula mesmo na classe alta. Chega a não ser nem um bom negócio, porque eles nunca vão ter um patrocínio dessas marcas por exemplo, porque não faz sentido, ninguém vai comprar, as pessoas vão no camelô comprar uma réplica. Mesmo o classe média alta brasileiro não tem 25 mil reais pra pagar numa bolsa. Mas o fã de rap brasileiro de repente tá usando um adesivo Gucci na capa do celular. E enquanto isso a gente tem 3 ou 4 marcas que investem alguma coisa no rap brasileiro, ao invés de esse número ser muito maior, num país desse tamanho. E a gente continua achando que o que vai fazer o nosso rap mais original brasileiro é colocar um pandeiro nos beats, ou samplear a tropicália, ou usar a batida realmente original do funk, mas vai muito além disso.

 

Quer chapar com seu chapa? Clica aí embaixo e cai dentro.

Também tem no Spotify e Deezer.

 

Sobre o autor

Ronald Rios é roteirista, comediante e documentarista. Apresentou o "Badalhoca MTV" de 2008 a 2011 na MTV Brasil. Na Band fazia o quadro "Documento da Semana" dentro do programa CQC, num formato de pequenos docs sobre pautas atuais na sociedade brasileira. Escreveu para o Yahoo, UOL, VICE, Estadão, Playboy, Red Bull e Billboard. Em 2016 fez a série de documentários "Histórias do Rap Nacional" para a TV Gazeta. Ronald também apresentou de 2010 a 2012 o programa "Oráculo" na Jovem Pan FM e foi roteirista do Multishow de 2009 a 2011, pela produtos 2 MLQS, onde rodou o programa de TV Brazilians, eleito um dos 5 melhores pilotos de TV nacionais de 2011 pelo Festival de Pitching de TV da operadora Oi. Em 2017 e 2018 rodou pequenos docs, podcasts e campanhas multimídia para o artista Emicida na gravadora Laboratório Fantasma.

Sobre o blog

Rap Cru é o blog do roteirista e documentarista Ronald Rios sobre Hip Hop. Brasileiro, americano, britânico, latino… o que tiver beats e rimas, DJs, grafiteiros e b-boys e b-girls, tem nossa presença lá.

Rap Cru